Entre Corvos e Preguiças: Reflexões de Uma Filha Única Sobre Laços e Liberdade

Juliana
3 min readFeb 27, 2024

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Numa dessas tardes de domingo em que a cidade parece tomar um porre de silêncio, me vi por acaso diante de um velho livro de contos dos Irmãos Grimm. Por uma dessas artimanhas do destino, meus olhos pousaram justamente sobre “Os Sete Corvos”. Ah, esses irmãos tinham uma imaginação fértil — se imaginação pagasse imposto, eles estariam falidos.

Eu, criatura única de meus pais, sempre naveguei nesse oceano meio sem ondas, onde a solidão e a companhia se misturam numa dança curiosa. Lendo sobre sete irmãos virando corvos por um estalar de dedos do pai, me peguei pensando que, talvez, não ser irmã de ninguém não fosse tão ruim. Afinal, nunca tive que competir por atenção ou me preocupar em ser transformada em algum tipo de ave por alguma paternidade impaciente. Meu pai, vejam só, é um verdadeiro monumento à paciência; se possuísse algum poder de transformação, provavelmente usaria para converter pressa em calma, e não filhos em corvos. Sua serenidade é tamanha que, se transformações fossem um traço de impaciência, eu seguiria minha vida sem temer virar ave, tal é a sua tranquilidade.

Mas, admito, há dias em que o silêncio é tão profundo que me faz companhia, e me pergunto como seria ter uma turma de irmãos — corvos ou não. Será que formaríamos um esquadrão, aliados contra os temidos deveres de casa e as arbitrárias horas de dormir? Ou viveríamos em eternas batalhas pelo último pedaço de pizza?

Às vezes, imagino que, em nossa família, não seríamos corvos, mas talvez preguiças, representando nosso amor por domingos sem pressa e uma certa resistência a qualquer coisa que exija muita energia. Me vejo, então, pendurada num galho, contemplando o mundo com a serenidade que só a preguiça proporciona, enquanto meus pais, na sua infinita paciência, tentariam descobrir como nos reverter para a forma humana.

Mas, deixando as preguiças de lado, a história da menina que busca os irmãos corvos é um tapa de luva de pelica sobre a importância dos laços familiares — algo que, como única do clã, valorizo imensamente, mesmo que minha família seja consideravelmente menos populosa (e, graças aos céus, menos emplumada).

Ponderando sobre o conto, é inevitável não pesar as vantagens e desvantagens de ter ou não ter irmãos. A doçura de não dividir o chocolate, em contrapartida, à falta de um cúmplice para as travessuras. O prazer de ser a dona do controle remoto, contra a ausência de um parceiro para as sessões de cinema em casa. Por um lado, o mergulho profundo na escrita, ao ponto de sentir a Energel Makkuro, negra como um corvo, riscar o papel em uma solidão contemplativa; por outro, a ausência de um parceiro para coletar e compartilhar contos fantásticos mundo afora, um contraste entre o prazer solitário da criação e a alegria compartilhada da descoberta.

No fim das contas, em famílias de corvos, preguiças ou simples mortais, o que vale são os elos que nos entrelaçam, invisíveis e eternos. E, ao fechar o livro dos Grimm, sou tomada por uma gratidão silenciosa pela paciência quase mítica do meu pai — que, por nunca me transformar em corvo, me ensinou a voar de outra maneira, sempre com os pés no chão.

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Written by Juliana

Crônicas sobre papel, caneta e arte.

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